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Aos Nossos Mais Velhos

Mais uma vez cumprimento o tablado, calço os sapatos e me entrego à salvadora prática. Ah, #tapdance, sempre você, meu fio condutor, meu farol, para que eu não perca de vista a alma da vida. Desta vez não trago apenas os sapatos. Vêm também caderno, caneta, e o telefone celular em que assisto, vez após vez, a uma improvisação de Dianne Walker, no esforço de transcrevê-la para estudar.


A mancha no sapato é marca da enchente...
A mancha no sapato é marca da enchente...

Certa vez ouvi Brenda Buffalino falar, em entrevista a Travis Knight, dos diversos momentos em que um artista, ao longo dos anos, precisa decidir se é hora de reinventar-se ou simplesmente desistir. Creio que estou vivendo um desses momentos: depois de uma enchente que desenraizou a mim e aos meus num solavanco e nos enxertou em outro lugar (bairro Jardim do Salso, que é Sálix, que é planta que cura...), do nascimento de um filho (e de um pai, por supuesto), depois de pandemia, de riso, de choro, de estar em certa evidência e depois me recolher... depois de tanta coisa repenso 32 anos de sapateio ininterrupto. O cenário muda, o entendimento cresce, as parcerias fluem, mas persiste a necessidade de pisar em um tablado de cabeça curvada em reverência, amarrar os sapatos em silêncio reflexivo e passar os minutos que me couberem em movente e sonora reflexão.


Trinta anos depois, amo ao Tap como a criança, no primeiro dia, em absoluta surpresa.


Trinta anos depois, amo ao Tap muito mais do que já amei, como em um casamento longevo, lapidado, polido pelas crises, memórias, celebrações - e já são tantas!


Trinta anos depois, amo ao tap de um jeito muito diferente do que quando tinha dez, quinze, vinte anos. Anseios e questionamentos caem e outros surgem em seu lugar. O que será que me aguarda? O que ainda posso esperar?


Dianne Walker. Griô do Tap Dance, ponte viva entre gerações, matriarca da tradição sapateadora, pessoa amorosa e generosa cuja mera existência (e maneira de existir) sintetiza tantos valores que me sustentam enquanto pessoa que sapateia! Assisto ao vídeo e transcrevo o que consigo entender de seu improviso para meu caderno e, depois, para o sapato. Mas... há tanto que não consigo entender! Porque encarnar as frases e grooves de outra pessoa é, de maneira muito real, "to be in someone else's shoes"! As frases simples da mestra são profundamente expressivas, é como se em um único heel perfeitamente timbrado e posicionado no contratempo exato houvesse a síntese de um tratado rítmico. "Ela é como água fluindo sobre os seixos", diz, tão apropriadamente um comentário no vídeo. A sequência que estudo tem oito compassos. Não é complicada e eu decodifico rapidamente quais são os passos. E no entanto, ao experimentar em meu corpo, sinto-me absolutamente desajeitado e maravilhado, porque embora seja fácil entender "o que" está sendo feito, preciso mudar completamente meu estado de mente-corpo para dar conta de "como" deve ser feito. E aí começa o terreno do inefável, da impossibilidade de explicar com palavras como tudo isso é sentido por este corpo que ora escreve. Simplesmente a sensação é a de aproximar-se de algo luminoso, uma espécie de sabedoria que transforma esforço em expressividade com zero desperdício e, por isso mesmo, diz em som-movimento-corpo coisas maravilhosas.


No momento em que escrevo este texto, Dianne Walker (ou Lady Di, como também é conhecida) tem 74 anos. Assisti-la em plena fruição da forma de arte levanta questões, e ao mesmo tempo as desmantela. Eu hoje, aos 42, já com certa preguiça de fazer hops demais ou de buscar aquele sexto som nos wings, começo a me perguntar: Há ainda espaço no mundo para uma vivência sapateante tal como esta a que me proponho? Justaponho então os 74 dela e os meus 42, e me dou conta de que a própria necessidade de formular esta pergunta se mostra problemática e escancara as neuroses de minha (só minha?) formação na dança. A pergunta tem cheiro de idadismo e do tipo de culto à juventude que o capitalismo tenta, todo dia, nos empurrar goela abaixo. Tem cheiro também dos ranços de certos territórios da dança em que a carreira do bailarino ainda é pensada como tendo seu apogeu ali pelos vinte e poucos anos, e o fim na casa dos trinta. Tem cheiro do pânico sentido por todo mundo que envelhece e começa a sentir que não há espaço digno na sociedade para aquilo que não se traduza em força, potência, explosão. Tem cheiro de medo do vazio de sentido que surge ao perceber o afastamento das supostas redes de pertencimento, simplesmente em função da caminhada em direção ao entardecer da vida.


Em resumo, tem cheiro de tudo, menos de Tap Dance, esta dança afrodiaspórica fundada em valores diametralmente opostos a estes enumerados acima, valores estes que servem de tablado sobre o qual podem pisar em segurança mestres como Dianne Walker, dentre tantos outros. Tais como o carinho pelos mais velhos e o respeito pelo tesouro de conhecimento guardado em seus corpos, disponível para ser transmitido à geração seguinte pela via da oralitura (salve, professora Leda Maria Martins). Acima de tudo, a noção de que em uma comunidade de verdade todos são acolhidos e ninguém é esquecido.


(Quem ensinou o shuffle para a pessoa que te ensinou o shuffle?)


Em minha caminhada já tive tempo de observar algumas "safras" de jovens sapateadores brasileiros surgirem e estabelecerem-se. E eles são, de fato, maravilhosos! O ímpeto de absorver toda informação possível e o desejo de superação traduzem-se em uma técnica cada vez mais virtuosa e fluente. Ano após ano a garotada nos encanta expandindo os limites do que pensaríamos possível em termos de velocidade, força, complexidade! E tudo isso é, de fato, maravilhoso. Não nos esqueçamos de que a tradição do Tap Dance é mesmo fortemente competitiva. Não por acaso um dos "mitos fundadores" desta tradição narra o emblemático duelo entre William Henry Lane, o Master Juba, e John Diamond, com o primeiro tendo sido considerado vitorioso. Não por acaso a tradição dos Cutting Contests - prática inspirada em tradições africanas, e presente, em diversas formas, em várias épocas e expressões da cultura preta estadunidense - foi e vem sendo uma das molas propulsoras do desenvolvimento desta forma de arte. Assim, afirmar que o Tap é competitivo e que, por isso mesmo, privilegiará corpos jovens e virtuosos em certos contextos, não é nada de revolucionário. Mesmo assim, me atrevo a colocar algumas questões.


O Tap é competitivo. Mas... é apenas competitivo? Não é também celebratório, um ato de comunhão e comunicação? Será por dificuldade em lidar com esta questão que nossas jam sessions são tão frequentemente "confundidas com cutting contests", sacrificando tão frequentemente o diálogo rítmico em prol da virtuose? Lembremos: o tap tem raízes fincadas no Ring Shout, uma dança circular religiosa, oração e comunhão através do corpo que movia e soava...


Observemos ainda mais de perto: seja o tap competitivo... ora, competições tem regras. Onde na tradição do Tap Dance ficou sacramentado que os únicos lances que "pontuam" nesta competição são a força, a explosão, a virtuose? Onde entra a expressividade rítmica neste score? E o estilo, a voz pessoal? (Ah, estilo, palavra tão subestimada, da qual a gente muitas vezes enxerga apenas o adorno, o elemento externo, e não percebe o ponto de origem, que é a vivência mesma daquele que dança, além daquilo que esta pessoa herdou de todas as outras pessoas que dançam... e daí toco, mesmo que de raspão, na noção de ancestralidade, central também para a visão de mundo de onde brota o Tap.)


Eu não sou um sapateador particularmente interessado em competições (a não ser quando estas são abraçadas pela festividade e se tornam, mais do que qualquer outra coisa, trocas, conversas). Simplesmente trago estas ideias aqui para pontuar que o tipo de competitividade para a qual volta e meia nós, sapateadores brazucas, nos voltamos, me parece "de cabeça para baixo", fortemente matizada por valores que não condizem com a rica matriz de saberes legada a nós pela cultura do Tap Dance. E esta é, por óbvio, uma questão muito mais ampla do que o Tap. Tem a ver com um certo modelo de civilização que ora vivemos, obcecado por produtividade e sempre pronto para descartar as "engrenagens gastas". Um modelo que gesta inevitavelmente a ansiedade que me leva aperguntar se o Leo pai pós 40 anos ainda pode se sentir um sapateador. Um modelo que, insisto, não tem - ou não deveria a ter - nada a ver com Tap Dance ou com o coração pulsante de saberes ancestrais que o anima. E é exatamente porque o Tap Dance se desvela para mim como uma via de contestação da cretinice do mundo, um cantinho muito especial em que posso estar em contato com a dignidade muito básica de ser um ser humano que soa sobre um chão de madeira, é que sigo retornando a ele para que ele me salve. Também por isso, sei que ele sempre estará lá, mantendo a minha cabeça em pé independente de qualquer outra circunstância, contanto que eu o honre e dele cuide com muito carinho.


(continua...)


Era este vídeo que eu estava estudando!

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Ilha - Pesquisa em Tap

é uma metáfora para o desejo de pesquisar o sapateado americano através de quaisquer enfoques possíveis, produzindo conhecimentos que venham a aumentar nosso entendimento da forma de arte, aprofundando nosso conhecimento de seu passado e fomentando, através da reflexão, a sua permanente renovação. Ela é um convite franco e democrático a parcerias com quem quer que ame o sapateado a ponto de desejar estudá-lo. No plano concreto, desejamos produzir, fomentar e compilar produções teóricas e artísticas de sapateadores que nos dêem a honra de ser nossos parceiros.

"Ilha"

é, acima de tudo, uma declaração de amor e gratidão ao Tap e um convite aos amigos do sapateado a partilhar desses sentimentos!

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