(por Leo Dias)
"É possível "harmonizar” tudo isso - concepções musicais, diferenças estéticas, gostos, biografias musicais e pessoais, enfim, sem que se utilize algum idioma específico? Em que "pré-território" estaríamos nos movendo? Tais questões dizem respeito a possibilidade de se criar um território que abre espaço para a " assinatura" de cada um, mas que seja, ao mesmo tempo, um outro ambiente, que é mais que a mera soma de todas as assinaturas: será que que a uma assinatura de cada um que resulta numa assinatura de todos, ou será que há uma assinatura da improvisação em si?Afinal, qual é o objetivo desse processo?
Um desses objetivos parece ser, simplesmente, que a performance seja bem-sucedida e que todos os envolvidos se sintam participando. E esse sucesso depende do grau e da qualidade das interações. O processo pode ser entendido enquanto uma metáfora de uma vida social e integradora em que se abrem espaços para a fala de cada um."
Rogério Costa. Música Errante. pg. 143
Esta foi a roda de improvisação dos professores do Festival Sampatapz 2022. Aconteceu no Teatro do MASP em junho e, juro, foi um dos momentos mais incríveis de minha estrada sapateante.
Já venho falando há algum tempo da devoção que sinto ao tema da improvisação em Tap Dance, que me leva a estar em constante pesquisa. Penso - e muitos já pensaram antes de mim - que a improvisação "funda" universos inteiros. Tudo está em jogo: tempo e espaço servem de moldura para a negociação entre o um e o muitos, a identidade individual e o todo.
Esta é uma reflexão que, penso eu, é séria, profunda, cheia de consequências muito reais e infinitas ramificações. Por isso mesmo, quando se apresentou a oportunidade de propor uma experimento de improvisação junto a um elenco tão qualificado (que oportunidade rara!) eu fiquei muito feliz. Feliz pela possibilidade de vivenciar e observar coisas que, no mais das vezes, só posso imaginar. Feliz enquanto pessoa simplesmente por estar lá, enquanto pesquisador pela oportunidade rara de observação, enquanto artista por poder sentir a poderosa energia que por lá fluiu! E por tudo isso, sou muito grato aos incríveis sapateadores com quem partilhei este momento: Agus Almirón, Cíntia Martin, Dudu Martinz, Filipe Sampaio, Fernando Flesch, Felipe Cavalcanti, Gabriela Mendes, Julián Ocoró, Luiz Guilherme, Marcelo Santos, Maria Clara Laet, Marina Carrijo e Rebeca Pereira.
As leituras e experimentos que tenho feito têm apontado para uma possível identidade entre as práticas de improvisação e os jogos com regras (haja visto que "jogos" não precisam necessariamente ser "competições quantificadas" e que as "regras" podem muito bem ser parâmetros estéticos. Basta pensar numa Jam Session dentro de uma estrutura jazzística tradicional). Nos jogos, as regras se constituem em território de acordo, língua comum sobre a qual vão se desenrolar os lances individuais, e que ao mesmo tempo atribuem sentido a esses lances.
Com isto em mente, propus ao grupo um jogo simples e em nada "meu" (o círculo rítmico é África. Ponto). Uns poucos referentes que pudessem servir de estrutura às "falas" individuais e organizar a interação. Não que, em propor regras, houvesse qualquer expectativa de controle: o improviso é um organismo vivo, e ele se autodetermina no agora, no junto, no instante, no cruzamento entre a regra - coletiva - e a biografia - individual. Utopicamente, coletivo e individual não se atropelam, e esta roda me possibilitou vivenciar, por 20 minutos, a utopia possível.
O que foi proposto:
1) Existe uma dada base rítmica.
2) Ela pode ser interrompida, criando-se o silêncio, a qualquer momento que o solista o deseje (combinamos uma "queda" para sinalizar esta interrupção - the band falls out) .
3) Padrões repetitivos significam "venha comigo, crie ressonância para o que eu estou fazendo".
O que cada um desses maravilhosos sapateadores fez com as regras foi, por assim dizer, misteriosamente cósmico. Entre chutá-las para um canto, transformá-las, segui-las ou questioná-las, muita coisa mágica aconteceu. E o propósito foi cumprido, creio, não apesar disso, mas POR CAUSA disso: indivíduos num todo, usando a escuta do outro como pauta da liberdade de ser. O lindo ser humano criativo dentro de uma estrutura que permita o acordo. Em suma: tudo isso que é TÃO AFRICANO e TÃO TAP DANCE e tão antigo, e que esta arte sagrada nos propicia, com imenso respeito à ancestralidade, vivenciar.
Minha curiosidade a respeito desse tema da improvisação coletiva é tão grande que me sufoca. Para além dos muitos experimentos anotados e esperando oportunidade de virem ao mundo, sobram questões sobre este mesmo momento aqui exposto: como será que se sentiram os participantes? Que mundo foi este ali fundado, na opinião de cada um dos participantes desta roda, e do público? Este mundo lhes agrada? E que dizer dos belíssimos nuances de cada uma das performances, e da maneira como estes nuances revelam histórias de vida?
Será mesmo possível gerar engajamento ético a partir de uma proposta estética?
Seguimos.
Leo, obrigada por este texto. As palavras após a excitação última pela partilha elétrica de viver. Confesso pra ti que o vídeo do improv mexeu comigo e o texto de agora me fez refletir de um jeito gostoso. O que quero dizer é, sim, tudo isso teve ressonância nesta vivente que sequer estava lá, mas sonha e sente como se estivesse. Forte abraço! T.