top of page
Buscar

A Árvore do Tap - Aula 1: Introdução

A que se propõe um curso sobre improvisação em sapateado? Uma visão do Tap Dance enraizada no jogo, na partilha e na espontaneidade.


Sapatear improvisando foi, para mim, desde cedo, uma total encantamento, quase como uma imersão em uma outra dimensão! Pelo prazer que me proporciona, pelo tanto de essência que me permite expressar, pelo estado de jogo em que me coloca, propiciando um tipo de relação comigo e com o outro que é viva e transparente, e pelas infindáveis reflexões que me propõe, como professor de sapateado, como artista, e também como pessoa. Essa percepção (necessidade?) do caráter vivencial da improvisação provavelmente tem suas raízes em minha experiência musical, que iniciou muito cedo já no seio da família e depois se orientou naturalmente para estilos musicais em que a interação entre os músicos, criando juntos de forma espontânea e prazerosa, era a tônica. Tudo isso norteou minha estrada dentro do sapateado americano para a busca, por um lado, de um certo estado de jogo – e aqui tomo emprestada uma expressão cara ao meio teatral e que responde por muito do que me atrai no ato de improvisar – e, por outro, de uma forma de treinar minha técnica de sapateado de forma a me tornar fluente neste mesmo jogo.


Comecei a dar aulas de sapateado bastante cedo (quinze tenros aninhos!), e desde o primeiro momento a improvisação me instigava agudamente. Criava em mim uma série de necessidades: de partilhar esse amor, primeiramente (raros os parceiros!). Mais tarde, de descobrir (Criar? Pesquisar? Coletar?) caminhos que me permitissem desenvolver a improvisação em sapateado americano de forma metódica. Por fim, de desenvolver ferramentas para ensinar improvisação para os meus alunos, estimulando-os a vivenciar o sapateado da maneira como eu o entendia: jogo, troca, comunicação, partilha.


Observando meu próprio aprendizado e, mais ainda, admirando os grandes mestres, fui paulatinamente me dando conta de que os bons improvisadores tem dentro de si, muito bem sedimentados, certos conhecimentos, certas habilidades. Eles podem ter mais ou menos consciência de seu próprio processo criativo, de que conhecimento é este que os permite "criar na hora" com tanta precisão e beleza. Mas, independente de ser formulado explicitamente, este conhecimento está sempre lá! O professor que sou nunca se contentou com explicações baseadas em "talento", "gênio" e seus sinônimos... não que tais coisas não existam, mas simplesmente nunca me interessou essa ordem de explicação para o fenômeno que eu presenciava. Eu queria entender o que é preciso saber para ser um bom improvisador para, de posse desse conhecimento, ser capaz de desenvolver a minha capacidade de improvisar e, principalmente, instrumentalizar meus alunos em seu próprio caminho como improvisadores. Sentia que se estes, independente de seu nível técnico em dado momento, não pudessem experienciar a liberdade expressiva e comunicativa que eu percebia como possível, meu trabalho como professor seria profundamente incompleto.

A trilha dessas reflexões, balizada por anos de experimentos, erros e acertos, me levou a três principais noções norteadoras:

1) A improvisação é um jogo - ou, pelo menos, pode ser entendida como tal. Optar por esse entendimento implica em uma vivência muito peculiar da improvisação, voltada para o lúdico.


2) A improvisação depende de um repertório técnico treinado previamente. Mas isso não implica em "saber toda técnica" para depois começar a aprender a improvisar. Pelo contrário: podemos usar a técnica mais simples como ponto de partida para o aprendizado da improvisação. Mais do que isso: experimentar com a improvisação desde o primeiro momento é uma forma de possibilitar o aprofundamento de várias questões que não dependem necessariamente de uma técnica avançada, e cujo entendimento nem sempre é estimulado em exercícios baseados em repetição e memorização.


3) Para percorrer o caminho entre aprender a técnica de sapateado e conseguir aplicá-la ao jogo da improvisação, surge a necessidade de criar estratégias pedagógicas específicas para esse fim – dinâmicas, jogos, desafios - que diferem qualitativamente de atividades baseadas em repetição e memorização de passos e sequencias, embora sejam fundamentadas na mesma técnica e nos mesmos princípios estéticos.

Improviso é Jogo?

Para argumentar que a improvisação em sapateado é um jogo, basta olhar para a própria tradição desta dança. Tome como exemplo os cutting contests, comuns em festivais de Tap no mundo todo. Tratam-se de competições entre sapateadores em que estes improvisam alternadamente. Para vencer, é preciso ser melhor que o oponente em uma série de "critérios" – ou regras – tais como o estilo, a inventividade, complexidade dos passos e, sobretudo, a precisão rítmica. Juízes são designados para avaliar os sapateadores dentro desses critérios e decidir quem será "cortado" da competição, até que reste apenas o vencedor.

Concursos desse tipo remetem às próprias origens do sapateado americano, e são um dos grandes motores de seu desenvolvimento como linguagem. É fácil identificá-los como "jogo", já que contém muitos elementos que comumente relacionamos com o ato de jogar, tais como "regras", "juízes", "competição". Mesmo assim, proponho que aprofundemos um pouco mais essa noção de jogo, extrapolando-a para outros lugares da cultura para , assim, definir com clareza o que entendo por jogo quando proponho um curso que, afinal de contas, se chama "Jogos de Improviso".

Existe vasta e profunda pesquisa sobre o fenômeno do jogo, enfocando-o a partir de perspectivas tão diversas e importantes como a antropologia, a psicologia, a educação e a filosofia. Todas essas disciplinas oferecem olhares que considero fundamentais para o entendimento do jogo em Tap, e uma revisão bibliográfica mais extensa para aprofundar essa relação está no horizonte, mas extrapola o que seria possível abordar neste curso sem perder seu foco. Dito isso, vou me limitar a pinçar três conceitos que são fundamentais para contextualizar a prática que nos aguarda.

1) O jogo leva o jogador ao um estado psicológico que é diferente do cotidiano. Esta vivência, por si, é o que leva as pessoas a jogar: jogar é bom!


2) O jogo é composto de regras que contém em si tanto um problema a ser solucionado quanto o horizonte de possibilidades para se chegar a esta solução.

3) O jogo se caracteriza-se por uma viva atenção ao momento presente, que possibilita uma resposta rápida a tudo que nele acontece - e nesta resposta rápida, na possibilidade de decidir instantaneamente como agir ou reagir, de acordo com o que o ambiente propõe, é que mora a diversão.

Tomemos por exemplo um jogo de futebol. A premissa é bastante simples: faça a bola passar pela goleira do time adversário. Aceita a premissa, vem a pergunta: o que é permitido e o que é proibido fazer para atingir o objetivo? Por exemplo: Posso tocar a bola com os pés, mas não com as mãos. Posso roubar a bola do oponente, mas não posso empurrá-lo. A partir destas restrições, e mesmo por causa delas, abre-se um leque infinito de possibilidades de deslocamento, posicionamento, estratégia, lances de habilidade, sutis interações psicológicas entre os jogadores, tudo isso dentro de um ambiente que muda rapidamente, desafiando o jogador a improvisar dentro dos parâmetros e possibilidades oferecidas pelo futebol, tomando uma quantidade enorme de decisões sobre o que e como fazer, de forma tão rápida que se torna difícil conscientizar todas elas. Ao mesmo tempo, se as regras não são aceitas – por exemplo, se não se tenta fazer o gol, ou simplesmente se pega a bola na mão e corre com ela – simplesmente não há jogo, nem diversão. O processo todo é tão prazeroso – a interação, a adrenalina do desafio – que pode-se afirmar que, vencendo ou não, jogar vale a pena!

Nossa definição mais comum para improvisação em arte – "inventar tudo na hora"- está totalmente presente no futebol. Estranhamente, esquecemos de levar em consideração em nossa reflexão outros dois fatores que estão presentes tanto no futebol quanto na arte: o treino e as regras.

É fácil perceber a relação no que se refere ao treino: o sapateador treina passos e mais passos, enquanto o jogador de futebol treina cruzamentos, passes, posicionamento, chutes a gol. Mas e as regras?

Igualmente presentes e indispensáveis para a diversão. Pense em uma JAM Session, destas que vemos nos festivais de Tap, e que bebem da tradição das JAMs dos músicos jazzistas. Estas jams tem suas regras enraizadas justamente no jazz: existe uma estrutura musical muito bem definida que deve ser conhecida por quem participa, sob pena de o jogo "desandar". Existe uma linguagem comum a músicos e sapateadores – palavras como "chorus", "tema", "groove" – que possibilita que todos se comuniquem e joguem o mesmo jogo. Existe o ritmo, que oferece infinitas possibilidades de organização de divisões e acentos mas que, em última análise deve ser preciso, claro, comunicativo. Existe a necessidade de interação entre os jogadores, o momento exato de "passar a bola' dentro da estrutura musical. E, acima de tudo, a necessidade de reagir de pronto a um ambiente em mutação constante e que demanda decidir rapidamente qual é a próxima jogada., dentro das possibilidades oferecidas por este jogo chamado JAM.

Por causa disto tudo, a diversão, a adrenalina, a sensação de uma percepção diferente do próprio tempo!

Se estendermos esta mesma discussão aos músicos dessa JAM hipotética, eles terão o que dizer sobre outras tantas regras deste jogo, referentes, por exemplo, à estrutura melódica e harmonia e à função de cada instrumento na música. E, por mais que haja liberdade para quebrar essas regras de acordo com a necessidade de expressão (já que, aqui, estamos falando de "arte", e não de "esporte"), as regras estão, sim, muito presentes, organizando toda a dinâmica. Música é nada menos do que um conjunto de regras matemáticas organizando o som, tal como pode atestar quem quer que se aprofunde um pouco no assunto.

No meio teatral o jogo e a capacidade de jogar são amplamente aceitas como parte essencial da formação do ator, e mesmo de um bom espetáculo. Diz-se que "não tem jogo" quando a cena está rígida, coreografada a um ponto de não haver uma interação fresca entre os atores. No que se refere à improvisação teatral, há diversas linhas de pesquisa, explorando, além do produto artístico, desde finalidades terapêuticas e educativas a dinâmicas voltadas à conscientização política... ou mesmo o mero prazer de "jogar teatro". Percebo em comum a todas essas abordagens os elementos que discutimos no futebol e na JAM: a reação rápida ao ambiente cambiante, o estado de jogo, e a necessidade de regras que orientem a ação dos jogadores. A regra aqui, como no caso da música, não define necessariamente ganhadores ou perdedores mas, antes de tudo, objetivos e restrições que tornam o jogo claro e vivo. Sobre isto – objetivos e restrições – acho que devemos divagar um pouco mais... e esta divagação será precisamente o foco de nossa próxima aula!



21 visualizações0 comentário
bottom of page