Ah, o prazer, a intensidade, a liberdade que sentimos em uma boa roda de improvisação!
Ou:
Ah, a ansiedade, a urgência e a tensão que sentimos em uma boa roda de improvisação!
Vivencio e observo atentamente esse universo do #tapdance, essa rede de pessoas que partilham uma linguagem e, as vezes, visões de mundo. Aqui e ali me deparo com as rodas de #improvisação e, a estas alturas da minha caminhada, minha reação é mais ou menos equânime: independente de a roda ser composta por pessoas de 8 ou 85 anos, por grandes profissionais ou recém-iniciados, eu simplesmente "caio dentro", para me divertir, me comunicar, me integrar... ser junto através do #sapateado. É questão, tão somente, de ajustar minhas escutas à realidade que se apresenta - o momento, o lugar, o contexto, as pessoas.
O universo do Tap, assim como o de outras artes populares, tem uma determinada maneira de organizar certas situações de improvisação em torno da competição. Creio que isto não é, necessariamente, bom ou ruim: é simplesmente humano. No caso do Tap, o fator competitivo está no âmago de sua história, além de ser uma importantíssima mola propulsora de seu desenvolvimento enquanto linguagem. Sabemos que os challenges, nas diversas roupagens que assumiu ao longo do tempo, são antigos, e compõem alguns dos mais importantes mitos fundadores desta arte. Nestes desafios em que a superação constante do "rival" era o mote, a técnica de sapateado encontrou um laboratório de criação prolífico em que a inovação era - e é - constante.
A leitura crítica dos referenciais históricos que nos foram legados permite também entrever que a necessidade de "vencer neste jogo" envolvia, para além da adrenalina da competição, questões mais graves, relacionadas a sobrevivência - material ou anímica. Vencer para conquistar espaço... legitimação... trabalho... subsistência. Vencer "politicamente", para superar, no plano simbólico - que é, sim, muito real e determina muita coisa concreta - as brutais e injustas contradições da própria sociedade em que o Tap nasceu e se desenvolveu.
Tudo isso foi - e é ainda. Circulo por aí com meu sapato na mochila, me deparo com estas rodas de #improviso e minha escuta capta todas estas contradições, todos estes motivos para vencer, repaginados, recodificados, mas presentes. Inseguranças pessoais de cunho subjetivo, misturam-se, confundem-se com necessidades muito concretas de conquistar espaço. É lúdico, mas subitamente é muito sério. Cada sapateador traz para a roda todas estas tensões. E não apenas: traz sua pulsão de vida, sua alegria, sua paixão, sua visão de mundo, e tudo isso é belo e grita por escuta. É vivo, é real, e é também simplesmente a tradição do tap, de novo e de novo. Mas aqui de fora, deste lugar, como um paisano que se aproxima despretensiosamente desse redemoinho de sons, com cabelos já começando a ficar grisalhos, observo e dou falta de uma coisa:
Da própria escuta.
Porque tudo se dá tão rápido! É preciso dizer tanto em tão pouco tempo para dar conta de tantas demandas que, penso eu, pouco espaço sobra para abrirmos ouvidos, olhos, pele, alma e inteligência e SENTIR o que está se dando neste círculo. Diga que tenho a alma de um senhor de 80 anos: eu terei de concordar. Deste lugar em que estou, este de quem nunca venceu e já não pretende tentar, sinto falta de... tempo. De respiro. Sinto falta de uma Jam em slow-motion, em que outras pulsões, além destas do vencer, tenham tempo de ressoar no espaço, nos corpos. Sinto falta de ver os pés e corpos absolutamente maravilhosos que tenho conhecido por aí terem a serenidade de desenvolver pensamentos musicais profundos que falem de outros lugares de sua alma. De suas tristezas e alegrias, suas angústias e sua fé, de seus amores... e não necessariamente em um ou dois compassos, e talvez não a 200 bpm. Sinto falta de uma respiração mais tranquila nestes círculos que me permita absorver tudo que está acontecendo e realmente me integrar com os demais, numa unidade de sentido e som. Sinto falta de respeitar (e de ser respeitado) a necessidade de silenciar e ouvir, pelo tempo em que a alma precisar, para depois soar - e na hora de soar, que sejam milhões de sons velozes em técnica vertiginosa, por que não? A questão não é essa. É simplesmente que, penso eu, estar CONSIGO, ou COM O OUTRO de fato, demanda um outro tempo de percepção. Um tempo que utilizarei para abrir espaço para encontrar tanto a mim quanto ao outro. E que me permitirá celebrar as importantes verdades que aparecem neste espaço recém aberto. Sejam as minhas, sejam as do outro.
Talvez eu esteja dizendo que sinto falta de investigar, em última análise, o que acontece com nossa percepção nas rodas de improviso quando trocamos o CONTRA O OUTRO pelo COM O OUTRO - o que leva naturalmente ao temido CONSIGO. O que acontece com as minhas escutas se tento virar esta chave? E se o faço, que novas possibilidades de mundo e de solução das contradições são fundadas?
Nesta reflexão não estou criando nada de novo, e nem tecendo uma crítica ao que quer que seja - ora, who am I in the line of the bread? O tap tem sua tradição, o ser humano tem sua maneira própria de operacionalizar o conflito, e eu não tenho a arrogância de me achar "mais certo do que todo mundo", dizendo que "não deveria ser assim". Estou simplesmente pontuando uma necessidade minha. E, veja bem, nem nisso sou original. Mesmo as mais virtuosas lendas do jazz sentiam necessidade de outros níveis de profundidade e outros tempos de escuta aqui e ali - e para ilustrar isso, deixo este tema maravilhoso de John Coltrane aqui embaixo.
Talvez este texto faça algum sentido se você usar Naima como trilha sonora.
Partindo de baixo para cima da publicação: passei primeiro para dar play em Coltrane e tomar-lhe a mão para que me acompanhasse nas tuas palavras. Eu, que acabei de chegar, mas como cheguei vivida de outros mardi gras, também estou nessa toada mais despacio, mais sapatinho e mais atenciosa para o outro. Esse desacelerar e olhar bem em volta tem permeado muitas esferas da vida nestes dois anos pandêmicos que nos fizeram dar com a cara no muro. Digo isso no sentido de que algumas práticas do tap permanecem, mas não passam por tanta reflexão frequente. Por que a jam tem que ser sempre competitiva e não lúdica, divertida, para rirmos ou nos emocionarmos sapateando nossas verdades recônditas. Tô contigo, Léo! Abraços!