Parafraseando Savion Glover: o sapateado é minha cidade natal. É a língua com a qual me expresso (o português nunca me serviu), meu ponto de partida e minha localização no universo. Obrigado, E.U.A, e às culturas africanas, e às europeias, e a todos os mestres que abriram a estrada em que venho caminhando desde os dez anos de idade!
Muito mais recentemente – há coisa de cinco anos – tive a oportunidade de iniciar um relacionamento feliz com uma outra tradição, igualmente poderosa: o Flamenco. E aqui, agradeço ao Tablado Andaluz e à Cia de Flamenco Del Puerto pela escola generosa que se tornaram pra mim. Essas pessoas me apresentaram a algo de uma intensidade ígnea que eu até então desconhecia, e me peguei surpreso por estar apaixonado por todos os aspectos desta arte: o cante, a guitarra, o baile. Foi estranho, exatamente por ter sido tão natural. Simplesmente, toda a sonoridade flamenca me caiu bem, e conversou comigo muito, muito de perto.
Naturalmente não tardou para que , em minha estrada dentro do sapateado começasse a surgir essa "paisagem nova" que o flamenco trouxe. Para além dos paralelos óbvios – como por exemplo, o fato de tanto o tap dance quanto o flamenco usarem os pés como instrumento de percussão com técnica bastante complexa – me interessaram outras coisas, talvez mais sutis, do fazer flamenco, que vieram a preencher certos "vazios" que eu sentia em minha formação como tap dancer.
Meu primeiro desejo foi transpor a rica e complexa rítmica flamenca para a técnica do tap dance, sem no entanto alterar essa técnica nem tentar buscar um corpo com estética flamenca (talvez isso tenha acontecido pelo fato de minha iniciação ao flamenco ter sido feita através da flauta, e não do sapato). Já aí encontrei campo infinito para exploração e diversão, e também a possibilidade de explorar certa solenidade e sobriedade musicais próprias de certos palos flamencos (vide as soleás e seguirillas). O flamenco ampliou meu repertório de colorações rítmicas e me tornou capaz de explorar "climas" que o jazz e o funk – territórios mais familiares para mim - não me ofereciam. Devo dizer, me trouxe ferramentas novas para expressar emoções que eu sentia necessidade de externar artisticamente, mas não sabia como (não canso de me impressionar com isso).
No rastro dessa primeira percepção vieram outras. Uma das mais importantes foi a de que o baile flamenco explora todo o corpo. Braços, torso, cabeça, olhar e, por fim, o sapateado, formam um todo único, convergente, e isso confere uma grande potência à performance. O que o pé diz em termos de som é potencializado pela mensagem visual do corpo, e vice-versa; uma coisa é indissociável da outra. Essa percepção me levou a questionar meu treinamento corporal como sapateador, e também a observar com outros olhos a performance de outros tap dancers. Uma questão me ocorreu: embora existam inúmeras variações estilísticas na corporeidade flamenca, ela ainda assim segue uma certa tradição, que permite reconhecer a identidade do flamenco em seus performers (linhas de braço, mãos e torso, por exemplo). A busca dessa estética é parte essencial do ensino do flamenco, pelo que pude observar. Já no tap, não existe uma (talvez haja várias?) estética corporal previamente pautada pela tradição – apenas uma técnica de movimentação dos pés, e ainda assim bastante flexível. Em não havendo uma "estética do corpo do sapateador", não há também uma didática específica para esse corpo. Por um lado, isso abre espaço para a pesquisa de muitas possíveis estéticas/didáticas, inspiradas em outras técnicas corporais, ou mesmo na movimentação particular de cada indivíduo (este é um campo que me interessa muito pesquisar como professor. Já o tenho feito como performer). Por outro lado, abre também espaço para a existência de um sapateado descuidado da corporeidade como um todo, atento só à técnica de pés e ao som extraído desta. Certamente este último caminho não pode ser considerado "errado" – não existe tal coisa numa arte aberta como o tap dance, e há uma porção de artistas geniais seguindo esta trilha, para além de vasta e importantíssima base histórica para um Tap que seja "apenas percussivo" (é justamente aí que o tap tem suas origens!). Mas, pessoalmente, acho muito instigante observar sapateadores que criaram suas próprias soluções para a equação "técnica de pés X corporeidade", e fico maravilhado com quão pessoais e harmoniosas podem ser essas soluções.
Uma outra característica interessante do flamenco é que existe uma tranquilidade reconfortante em seus artistas no que se refere ao uso do silêncio, da pausa e dos andamentos lentos. Grandes bailaores flamencos tem a capacidade de ficar por um tempo indefinido em cena imóveis, ou quase, mas com uma tal qualidade de presença que torna essa imobilidade tão ou mais intensa do que uma rajada de sons fortes e rápidos. Os números de flamenco são elaborados de forma a haver uma alternância entre dinâmicas altas e baixas que torna ambos os extremos envolventes em sua relação um com o outro. Sinto que há aqui duas verdades que escapam a muitos tap dancers (certamente me escapavam): que o silêncio é um componente essencial da expressão musical, e que um corpo imóvel, mas presente, pode ser muito mais expressivo do que um movimento sem "recheio", sem "peso", sem energia (será que essas coisas passam ao largo de nós, tap dancers, porque achamos que só seremos realmente bons se sapatearmos bem rápido e com passos bem difíceis o tempo todo?).
Bueno... creo que esto es todo por hoy! Gracias a la vida por ter me dado a oportunidade de me aproximar do flamenco e, no mas, certamente ainda aprenderei muito com esse povo. O mais engraçado é quando me pego vendo meus comparsas do ballet girando lá suas piruetas e me escapa um "OLÉ", ou quando toca a intro de um tema jazzístico e me vem um "toma ya". Sério, isso pega.
(na guitarra, o amigo Giovani Capeletti!)
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