ALERTA: Esta é uma divagação (longa) sobre improvisação em sapateado americano.
O livro "O Tao Da Música", de Carlos Fregtman, rendeu-me reflexões das mais preciosas. Hoje li um trecho que falava sobre Wu-Wei - um conceito taoísta que se relaciona com o viver/agir fluente, espontâneo, sem excesso de esforço ou controle. Pensar na deliciosa sensação de improvisar tap foi a minha reação mais espontânea - mas esta foi freada bruscamente pela imagem que meus olhos viam por sobre o livro.
Meu aluno, cuja fisionomia indica ascendência indígena bem próxima, de cenho franzido.
Fazendo prova anual, valendo a aprovação.
Em... artes.
Aprovação em artes.
Minha cabeça chacoalhou.
A cultura ocidental - esta que está a afundar a si e ao planeta - tem o cacoete de criticar os "índios" (como se esta palavra pudesse homogeneizar num estereótipo raso a diversidade de povos que habitavam o Brasil Pré-Colonial) - rotulando-os de "vagabundos" e "preguiçosos". Pergunto, tentando afastar essa surdez mental que nos impede de relativizar nossos paradigmas: que sentido faz para um indivíduo que traz dentro de si uma cultura que sabiamente testemunhou a generosidade da Natureza e aprendeu a conviver com ela fluindo através de seus ciclos, sem esforço desnecessário... para esse indivíduo, que sentido poderia fazer toda essa nossa adoração pelo esforço de testa franzida e dentes cerrados (quanto mais sofrido mais bonito)? Que sentido este indivíduo poderia ver numa mentalidade desse tipo?
Wu-Wei.
Prova... Final... de Artes.
Cacofonia kafkiana.
Perguntemo-nos: quanto do esforço que somos educados a fazer é realmente necessário?
Ou façamos o exercício de imaginar uma civilização moderna que realmente vivesse no AGORA, sem excesso de esforço, fluindo espontaneamente através dos eventos que o universo propõe. Nessa civilização talvez fôssemos caçadores-coletores. Seize the Day. Deus dá, Deus tira. Será que a ideia é tão ruim?
A agricultura surgiu para CONTROLAR a natureza. Por que controlar? Dominar o ambiente é mitigar o medo. Da fome, da dor, da morte, do imprevisto. Que esperteza! Mas... o que mais veio de dentro deste controle? A população aumentou muito por causa da agricultura - mas ainda há fome, e muita. Surgiu também a propriedade privada, e tudo de ruim que ela trouxe. A doença do TER, que nunca tem medida certa porque, mesmo no seio de uma terra generosa, uns TÊM muito e outros TÊM nada. Da ilusão do "tenho" surgiu o medo do "não tenho" e disso adveio a miséria em meio à fartura.
Todos os meios que desenvolvemos para DOMAR o indomável - a Natureza - efetivamente nos fizeram viver mais... mas a causa primeva do desejo de controlar, o medo (da fome, da dor, da morte) foi mitigado? Atingimos nosso objetivo? Será que esse passo desajeitado para fora da Natureza serviu mesmo para alguma coisa?
Wu-Wei... fluir. Reagir espontaneamente... Nossa. Como a espontaneidade é temida. Como a Natureza!
O agir espontâneo, natural, mete o dedo na fragilidade das convenções, relativiza as normas de convívio e, acima de tudo, "puxa o tapete" da cultura da veneração ao sofrimento que nos cerca. A espontaneidade afirma a existência do indivíduo de forma tão veemente que se torna urgente para o status quo desqualificar tudo aquilo que é autêntico, sob pena de este perder sua única razão de ser: o controle.
A naturalidade espontânea é feita de alegria e plenitude imediatas. E quem sente isso já não precisa de um céu depois da morte, nem de um produto propagandeado, para atingir a plenitude (como era o slogan? "Abra a felicidade"). A espontaneidade é intuitiva, autônoma, autoconsciente - e por isso é preciso destruí-la. Caso contrário, não será possível para algumas pessoas controlar outras pessoas para atingir este ou aquele fim.
E é exatamente por isso que aqueles que tem ânsia de dominar os outros sempre pintam a espontaneidade como subversiva e daninha, e o "indivíduo" como "desajustado" e culpado do mal coletivo (a única coisa que se pode fazer como indivíduo é consumir, e por isso consumimos tanto, na ânsia de tentar ser alguma coisa. Pensar como indivíduo, daí já é tabu).
O que me leva, finalmente, às minhas aulas de improvisação em sapateado. Mas, depois de tudo que foi dito, pouco resta a acrescentar, exceto que é muito fácil entender a angústia e o medo experienciados por muitas pessoas na roda de improviso - lugar de espontaneidade - e que é igualmente fácil se comover com a alegria sentida por aqueles que ultrapassam o limiar do medo.
Além do limiar está a liberdade.
O senhor na gaita é meu pai, que me ensinou como a beleza da natureza é simples e perfeita.
Divaguemos e catilogemos (como diz um jornalista baiano que admiro). Fiquei e foquei nesta tua pergunta "Perguntemo-nos: quanto do esforço que somos educados a fazer é realmente necessário?"
O valor do trabalho, como pensamento ocidental, passa por um esfalfamento do corpo, um amansamento da alma e uma determinação em controlar a natureza. É esmurrar a ponta da faca e conseguir apenas furar a cartilagem. Max Weber explica.
O sujeito indígena é visto aí, como um vadio porque não perde seu dia num trabalho que nada lhe agrega e que, no fim, atrapalha sua conexão com toda a vida que o circunda. Nós, por nosso lado, ficamos presos em realizar somente aquilo que é "necessário" e que nos remunere de alguma…