"Então, como substituto da percussão do tambor, você tem a batida dos pés. Você tem Juba, a percussão corporal. O som das palmas. A tradição da dança do círculo sagrado era o acompanhamento, e o dançarino respondia a esse acompanhamento e improvisava nele. Essa era uma expressão rítmica que aconteceu muito cedo nas plantações. "
Constance Valis Hill
Um ser humano (ou mais), um par de sapatos de tap, e... o mundo. Sem intermediários nem camadas de proteção. O que sempre me apaixonou no ato de sapatear na rua foi essa vulnerabilidade, essa permeabilidade que faz questionar, diretamente na pele, os limites entre arte e vida, performance e cotidiano. A brisa que refresca meu rosto se mistura à luz filtrada pela copa das árvores, à buzina do taxi e ao olhar curioso do transeunte que poderá ou não apreciar minha intervenção naquele espaço... e tudo isso molda, encharca, vivifica meus taps de uma maneira única!
Arte e Vida... é interessante pensar nessa distinção. Em como estamos acostumados aos ditos “espaços de arte” – teatros, museus, cinema – a ponto de naturalizá-los como sendo os “altares” da arte por excelência, recortados, separados da vida, e no entanto esforçando-se tanto para demonstrá-la, simulá-la... interessante notar que, embora nos pareça óbvia, esta é apenas uma noção possível de arte – que se conecta à cultura ocidental – e que podemos tranquilamente questionar essa noção. E seguindo por essa vereda, chegaremos nas desconfortáveis dicotomias entre cultura popular e cultura de elite, arte popular e acadêmica, e mais abaixo nesta rua inevitavelmente faremos questionamentos sobre a arte elitizada, desconfortáveis com a “higiênica” superioridade com que esta tenta se colocar em relação à arte “do povo” (notadamente, uma dicotomia que expressa outra noção bastante ocidental).
Trago de maneira bastante radical aqui estes pares de opostos justamente para dar a ver o quanto de caricato há neles. E o quanto um “chacoalhão” nessa maneira de pensar talvez possa nos trazer algumas luzes sobre a nossa amada arte do sapateado. Para isso, talvez nos seja útil pensar em outros paradigmas, enraizados em culturas em que arte e vida são uma única coisa e a manifestação artística cumpre sua função inserida, fundida, como parte visceral do próprio cotidiano. E, já que é pelo Tap Dance que aqui estamos, falemos de África, ora pois. De um pensamento de dança e música nascido de um pulso de fé, de laço humano, de organização social, de transmissão oral de conhecimento (oralituras, para usar o termo cunhado pela Dra. Leda Martins), de ancestralidade, de filosofia de vida que não apenas se expressa mas existe e se faz realidade no dançar e musicar. Falemos de todos os lugares onde o tambor é tocado (ou os pés e mãos, quando subtraídos os tambores) porque a vida impõe a necessidade de que soem – seja numa plantação de algodão ou cana, numa esquina da Filadélfia, numa roda de samba de qualquer boteco ou num tabladinho no calçadão de Copacabana. E falemos disso tudo desde já despindo uma questionável noção de que esta arte que não nasce e não se orienta necessariamente para os museus e casas de espetáculos é “faltante”, “carente” de alguma coisa, talvez em favor de um entendimento de que ali, quem sabe, haja uma visão de mundo antiga, profunda e profundamente consciente.
Porque vejamos: o Tap Dance nasce da comunicação rítmico-corpórea que se dá entre africanos escravizados em ambientes informais, nos lugares em que eram forçados a trabalhar e sobreviver... e, mais tarde, mesmo quando suas formas são absorvidas pelo nascente mercado do entretenimento (minstrels, vaudeville and so on) ele segue se desenvolvendo em encontros informais (como os challenges) em locais informais (como as esquinas) e sendo transmitido e desenvolvido através de situações de ensino-aprendizado informais (como estes mesmos challenges, nestas mesmas esquinas) pelos descendentes destes mesmos africanos, já não mais escravizados, mas ainda tendo as portas fechadas pelas muitas barreiras (legais, inclusive) impostas pelo racismo. E, numa curva um pouco posterior da rua do tempo, é celebrado em Jam Sessions, encontros improvisados informais (ah, este parentesco tão mal refletido que via de regra atribuímos entre "improvisado" e "informal") inspiradas na tradição e nos moldes do Bebop Jazz, cujas raízes se fincam no mesmo povo e na mesma cultura.
Mas... espera um pouquinho...
O que é uma ambiente formal, afinal de contas? Qual é o lugar do “sério”, do validado”? Que sentido faz falar em formalidade (referindo-se ao museu, ao teatro, à escola de dança com barra e espelho, etc.) quando nos referimos a uma arte que nasce no seio da exclusão, justamente a partir do gênio daqueles a quem o dito “espaço formal” foi historicamente negado? E, para sentir com a mão o muro desse beco sem saída: por que nos custa tanto abandonar certos preconceitos e dar-nos conta da seriedade, organização e profundidade de sentido das relações de arte e aprendizado gestadas, por assim dizer, na rua?
(continua...)
Referências:
- FRANK, Rusty. The Greatest Tap Dance Stars And Their Stories , 1900 – 1955. Edição
Revisada. Boston: Da Capo Press, 1994.
- HETHERINGTON, Pamela. Street Hoofin or i'll Knock You Out https://www.soundspacephilly.net/sounding-off/tag/street+hoofin
- MARTINS, L. PERFORMANCES DA ORALITURA: CORPO, LUGAR DA MEMÓRIA. Letras, [S. l.], n. 26, p. 63–81, 2003.
- No Maps On My Taps (documentário). Direção e Produção: George Nieremberg. Direct Cinema Limited, 1979
* Todas as referências originais em inglês são aqui traduzidas pelo autor deste texto.
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