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Foto do escritorLeonardo Dias

Tap na Rua (parte 2) - Por Leo Dias


“Não existiam escolas de dança como existem hoje. As poucas escolas de dança que existiam eram para crianças ricas, e as crianças pobres tinham que aprender na rua. E isso doía porque as crianças negras tinham que aprender na rua, e a gente via as crianças ricas indo para escolas de dança. E a nossa dança vinha da alma. O que a gente sentia, ouvia, o som… e a dança deles vinha da contagem, 1, 2, 3, 4, 5, 6 ...E de certa maneira, tudo isso se misturou. Mas existia uma diferença na dança. Tão diferente quanto a noite do dia.”


Sandman Sims



A história do sapateado é complexa. Porque é viva e pulsa. Porque é feita de gente, de vontade de vida, e também da cara do tempo e do lugar em que acontece.

A mim parece que um bom começo para entender algo tão grande é cultivar uma certa humildade, sabendo de antemão que o máximo que se pode fazer é contribuir com um ponto de vista que nada mais será do que uma gota no oceano do entendimento, incompleto e, por isso mesmo, permanentemente em construção.

Sou um sapateador brasileiro que ama sapatear na rua. Faço-o por instinto, por prazer. Mas conheci o Tap a partir do filtro disponível para mim no tempo de minha formação: as escolas de dança, e os workshops. Ao mesmo tempo que serei sempre grato pela sólida formação que estes me proporcionaram, não posso deixar de atentar para o fato de que estes ambientes não deram conta de várias necessidades que surgiam em mim como que "nascidas de dentro do próprio sapato". Dentre elas, a necessidade de improvisar cotidianamente, em diálogo com outros sapateadores, e de viver o Tap fora da relação tablado-espelho, ou palco-plateia, que enfatiza a construção coreográfica. A minha alma pedia outras coisas, e quando o estudo da história do Tap me mostrou que estas coisas emanavam de dentro da própria tradição desta arte, senti um grato alívio, ao mesmo tempo em que diversos pontos de interrogação começaram a me inquietar.


No texto anterior sugeri que o Tap tem suas raízes - pelo menos uma delas - "na rua", por assim dizer. Pensar nisso me faz querer saber mais sobre a maneira como o sapateado vem sendo transmitido desde suas origens. Me dá uma nostalgia desse lugar que não vivi, onde a tradição oral imperava. O challenge nas esquinas. O Hoofers Club. O backstage dos infindáveis palcos da era de ouro, os espaços partilhados de ensaio... a tal "informalidade", palavra essa que só consigo usar entre aspas, uma vez que não dá conta da importância de todos esses espaços de aprendizado, tão distantes do mundo a que fui introduzido - barra, espelho, aquecimento, coreografia.

Me faz também querer entender melhor de que maneira o Tap Dance passou a ser ensinado em escolas, e como a transição para este ambiente, ao mesmo tempo que trouxe contribuições importantes para a forma de arte, também transformou a maneira como ela é transmitida, quiçá excluindo dela elementos essenciais, e um pedaço considerável do que lhe dá sentido.

Em especial me interessa pensar em quem podia (e pode) ter acesso às escolas de dança. E aqui, penso em exclusão, tanto por questões econômicas quanto raciais (o que dá ao assunto uma tonalidade de cruel contradição, se considerarmos onde o Tap nasceu e quem o criou). Esta é uma questão histórica. E é também atual, como sabemos. Entender em profundidade como esse processo se deu em seu próprio território - os EUA - demandaria ter mais vivência do lugar e mais leitura do que disponho neste momento - como dito ali em cima, é um tema complexo. Prefiro deixá-lo em aberto e convidar você, leitor, a trazer elementos para esta discussão.


Por outro lado, voltemos àquela criança que fui, e que conheceu o Tap e teve sua formação dentro de uma escola de dança aqui no sul do Brasil. Ela cresceu e tornou-se um adulto inquieto, que se faz perguntas sobre a visão de Tap Dance que chegou ao Brasil com nossos pioneiros. Estes bravos que foram para os EUA e de lá trouxeram as sementes... que sapateadores viram? Em que ambientes circularam? Com que visão de mundo e de arte foram defrontados? Dado que o Tap Dance é uma tradição ramificada desde a origem, onde visões conflitantes sempre conviveram... que ramos desse tronco foram explorados e "enxertados" aqui no Brasil pelos bravos pioneiros? Esta é uma questão enorme, e importante, porque busca entender o "filtro" por que passa o sapateado em seu processo de "importação" para o Brasil.


E isto tudo, na verdade, é o meu desconforto perguntando: por que é que não vi uma aula de improvisação num festival de sapateado brasileiro até pelo menos o meio da década de 2010? Por que é que, como amantes de uma arte que tem raízes tão fortemente fincadas na rua, na cultura popular, na improvisação e no círculo, exploramos ainda tão pouco estes territórios outros, que extrapolam a forma proposta pela apresentação de coreografias em teatros?


Que fique claro: sou cria dos pioneiros do Tap brasileiro. Pago, e sempre pagarei, meu tributo de gratidão ao seu trabalho, sem o qual eu não estaria aqui. Sou também consciente de que o tema da improvisação e dos ambientes "não-espetaculares" tem suas complicações também lá onde o Tap nasceu, e não somente no Brasil. Acrescento ainda que nada do que digo vem no sentido de depreciar a tradição coreográfica muito sólida do Tap Dance, com infindos exemplos, que vão desde os acts do Vaudeville, passando pelo teatro musical, e chegando a companhias de inquestionável importância, como a American Tap Dance Orchestra e a Dorrance Dance, para citar exemplos poucos e óbvios. Meu ponto é tão somente o seguinte: neste momento, com a informação e a vivência de que dispomos por aqui, talvez fosse saudável e revolucionário tomarmos a peito a tarefa de integrar em nosso trabalho nas escolas de dança um compromisso mais aberto com a tradição urbana, improvisacional, pautada na comunicação rítmica, que está na raiz do Tap. Não somente por uma questão de coerência histórica, mas também para trazer vitalidade para o sapateado que fazemos, integrando a ele o que desde sempre foi intrínseco ao tap dance: a potência de uma visão de arte nascida no seio da africanidade. As muitas e ricas possibilidades de mundo que se apresentam a nós quando nossos sapatos nos levam até a rua e nossa escuta se abre para o mundo, e para o outro, que comigo o partilha. Com o conhecimento de que hoje dispomos, talvez possamos "trocar o filtro" de forma a não perdermos elementos tão nutritivos e essenciais da tradição a qual tentamos fazer parte.


Minha imaginação me leva ao passado, ao tempo em que africanos escravizados usavam do ritmo criado por seus corpos porque comunicar-se era questão de sobrevivência. E no tempo que hoje vivemos... como faremos para nos comunicar e sobreviver?



Referências:


- FRANK, Rusty. The Greatest Tap Dance Stars And Their Stories , 1900 – 1955. Edição

Revisada. Boston: Da Capo Press, 1994.


- HETHERINGTON, Pamela. Street Hoofin or i'll Knock You Out https://www.soundspacephilly.net/sounding-off/tag/street+hoofin


- MARTINS, L. PERFORMANCES DA ORALITURA: CORPO, LUGAR DA MEMÓRIA. Letras, [S. l.], n. 26, p. 63–81, 2003.


- No Maps On My Taps (documentário). Direção e Produção: George Nieremberg. Direct Cinema Limited, 1979


- American Tap (documentário). Direção: Mark Wilkinson. Produção: Annunziata Gianzero. Ivy Media Group Inc., 2018


* Todas as referências originais em inglês são aqui traduzidas pelo autor deste texto.




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